Elias Andreato encena peça vanguardista de Fernando Pessoa, ‘O Marinheiro’
CRISTINA CAMARGO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Nunca fui tão feliz”, afirma Elias Andreato, 69, sobre “O Marinheiro”, peça de Fernando Pessoa (1888-1935) que ele dirige em um reencontro com o escritor de sua juventude. “É como estar diante de um oceano intenso e assustador, mas curioso como uma criança e desejoso de se banhar nas águas do poeta”.
O oceano e a intensidade aparecem em cena na montagem estrelada pelas atrizes Cristina Mutarelli, Michele Matalon e Muriel Matalo, em cartaz no Atelier Cênico, espaço aconchegante em Santa Cecília, na região central de São Paulo.
Os minutos de espera, em um saguão decorado com espelhos, cartazes de cinema e livros, funcionam como uma preparação para a imersão na peça intimista, assistida por um público máximo de 50 pessoas, em um teatro que possibilita a proximidade física com o palco.
Enquanto velam uma mulher em frente a uma janela aberta para o mar, as três irmãs atam e desatam nós em uma imensa corda de marinheiro e refletem sobre a vida e os sonhos. Falam sobre o passado, filosofam sobre os sentimentos e questionam a realidade.
Doze mil metros de corda ocupam todo o cenário, assinado por Simone Mina, e enlaçam as cadeiras onde as figuras femininas estão sentadas, dando o aspecto de marionetes às personagens. Elas manipulam a corda e criam tramas diversas, símbolos de suas existências.
No texto dramático do poeta português, a história acontece no quarto de um castelo antigo, possivelmente na Idade Média -a época não é claramente indicada na dramaturgia.
O oceano invade o espaço por meio do som de ondas e da presença onírica de um marinheiro perdido em uma ilha deserta. Na narrativa de uma das irmãs, ele cria um mundo imaginário para escapar da solidão.
“Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas”, diz o texto.
É noite e, enquanto velam a morta em um cenário estático, quase imóveis, as três mulheres libertam as mentes das amarras da realidade e vagam por sonhos conduzidos por diálogos.
A iluminação, feita por Wagner Freire, é, na montagem, um elemento cênico importante. Há um jogo de luzes e sombras que conduz a passagem das horas e os devaneios das personagens. É também um marcador que permite à plateia participar do amanhecer do dia e, talvez, da volta à realidade.
Marco inicial do modernismo de Portugal, o texto de Pessoa é centrado na reflexão e não na ação, em um movimento transgressor para a dramaturgia da época.
A peça foi escrita em 1913, véspera da 1ª Guerra Mundial, e revela o desejo do poeta e dramaturgo, então com 23 anos, de questionar o teatro tradicional.
“O drama estático, que possibilitou ao poeta o primeiro esboço de seus heterônimos, hoje nos permite um mergulho profundo na alma de Pessoa”, diz Andreato.
De acordo com o programa da peça, as três mulheres são embrionárias da essência dos três principais heterônimos do poeta: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
“O Marinheiro” marca o retorno da atriz Muriel Matalon aos palcos, após uma longa pausa. Ela dedica o espetáculo à atriz Myriam Muniz (1931-2004).
“Teatro é dos deuses, é dos mestres”, afirma. “Ciente do privilégio que o teatro oferece: o encontro com pessoas iluminadas, dedico o fazer deste espetáculo à minha grande mestra”.
O MARINHEIRO
Quando Até 18 de julho. Às quartas e quintas-feiras, às 20h.
Onde Espaço Atelier Cênico
Preço R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia-entrada)
Autoria Fernando Pessoa
Elenco Cristina Mutarelli, Michele Matalon e Muriel Matalon
Direção Elias Andreato