Encontrar comida é nossa maior batalha em Gaza, diz palestina em Rafah
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando atende o telefone e ouve “como você está?”, Taghreed Rabee, 27, respira fundo e diz que essa é uma pergunta difícil de se responder na Faixa de Gaza, território palestino que tem sofrido bombardeios intensos de Israel há quase cinco meses.
“A maior batalha é encontrar comida. Se você acha o que comer em um dia, no dia seguinte não vai ter tanta sorte”, disse a palestina nesta sexta-feira (1º) à Folha de S.Paulo. “Meu marido passa a maior parte do dia procurando, dorme duas, três horas por noite e já acorda para procurar de novo. Não tem carros nem combustível em Gaza, então às vezes ele passa cinco horas caminhando e outras cinco horas numa fila para receber comida enlatada e pão.”
Taghreed está em Rafah com os dois filhos, o marido, Mohammed, e com a família da irmã, que também tem três crianças. A cidade no extremo sul de Gaza é onde se concentra mais da metade da população do território, que foi obrigada a fugir da guerra e agora aguarda uma invasão iminente de Tel Aviv.
A luta de Taghreed por comida é compartilhada por todos os palestinos em Gaza. Com o bombardeio constante e a dificuldade da entrada da ajuda humanitária, mais de meio milhão de pessoas estão a um passo da fome, e todos os 2 milhões de habitantes do território estão sendo afetados em maior ou menor grau pelo desabastecimento. É o que apontam relatórios de agências da ONU.
De acordo com a UNRWA, agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos, um quarto da população de Gaza, mais de meio milhão de pessoas, enfrenta “níveis catastróficos de insegurança alimentar”. O comissário-geral da agência, o suíço Philipe Lazzarini, disse que Gaza está na iminência de uma fome causada pelo ser humano e que há cada vez mais casos de caos e roubos.
Um relatório da ONU cita uma avaliação da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) de que toda a cadeia de produção de comida em Gaza foi afetada pela guerra, com 97% da água sendo agora considerada imprópria para consumo e 27% das estufas destruídas. Mais de 40% das fazendas e 600 poços de água sofreram danos, e a indústria de pesca está paralisada.
Com isso, a população do território depende quase inteiramente da ajuda humanitária que vem de fora, mas a quantidade de material que tem entrado é insuficiente, diz a ONU. Em fevereiro, uma média de 97 caminhões com ajuda entraram em Gaza por dia, muito abaixo dos 500 diários que a UNRWA diz que seriam o necessário.
A agência afirma que problemas de segurança dificultam a entrega de suprimentos, além do fato de que os dois pontos pelos quais os israelenses permitem a passagem, um em Rafah e outro em Kerem Shalom, frequentemente são fechados.
Foi durante uma entrega de alimentos na Cidade de Gaza, no norte, que dezenas de palestinos foram mortos e ficaram feridos na quinta (29), quando soldados israelenses dispararam contra pessoas que se aglomeravam perto de caminhões carregados de ajuda humanitária.
Israel afirma que a maioria das mortes foi causada pelos próprios palestinos, que foram pisoteados e atropelados, e que matou menos de dez. O Hamas, grupo terrorista em guerra com Tel Aviv, falou em 112 pessoas mortas pelos soldados israelenses.
Taghreed diz que, quando tem sorte, consegue comprar alguns legumes básicos, como batata, tomate e pepino, mas a preços exorbitantes. “Um quilo de tomate custa US$ 10 [cerca de R$ 50], um quilo de batata, US$ 12 [R$ 60]. Pagamos US$ 30 [R$ 150] por um frango congelado. Já esquecemos qual é o gosto de fruta.”
“Não há emprego nenhum em Gaza, nenhuma renda. Se você tinha dinheiro guardado, está usando agora para comprar comida”, diz Taghreed. Ela afirma que, desde o início da guerra, já perdeu 15 quilos, e o marido, 20. “A nossa prioridade são os nossos filhos. Nós não temos importância, só o que queremos é que eles não saibam o que é a fome.”
Taghreed conta ainda que não produz leite materno suficiente para a filha, Ivana, que tem cinco meses de idade, e que também não consegue encontrar o alimento em Gaza. “Ela nasceu duas semanas antes de a guerra começar”, diz. Na época, Taghreed morava com a família nos arredores de Khan Yunis, perto da fronteira entre Gaza e Israel. Desde o início do conflito, ela já teve que fugir cinco vezes. Hoje, mora em uma barraca em um campo de refugiados na cidade.
A ONU estima que 1,7 milhão de palestinos de Gaza, mais de 80% da população, teve que fugir de casa desde o início da guerra. O Ministério da Saúde local, controlado pelo Hamas, também disse que ao menos dez crianças morreram como resultado de desnutrição e desidratação desde o início.
Taghreed é irmã do brasileiro Hasan Rabee, que foi repatriado na primeira leva de cidadãos do país que foram resgatados de Gaza pelo governo Lula, no dia 14 de novembro. Ela não tem cidadania brasileira, e diz que espera que Brasília possa tirá-los de lá em breve também. “Não há vida em Gaza, e mesmo que a guerra termine, não vai haver vida. Não temos mais onde morar. Não há lugar seguro em Gaza.”